O que Dominique Pelicot nos ensina sobre violência sexual masculina (parte II)
ou sobre como mulheres devem imaginar o inimaginável
Oi, tudo bem? Essa é a segunda e última parte de uma série onde eu trago considerações importantes para todas mulheres sobre o caso de Gisele Pelicot, cujo marido, Dominique Pelicot, a drogava e convidava outros homens para estuprá-la. Na primeira parte eu trouxe detalhes sobre o caso:
Agora, na segunda parte, vamos conversar sobre lições muito importantes que essa história pode ensinar a todas nós. Vamos lá?
1. Todo homem é um estuprador em potencial, e agora podemos desenhar o porquê
Um dos elementos que mais chama a atenção na descrição deste caso é o perfil dos estupradores de Gisele Pelicot, ou melhor, a ausência de um perfil. São homens jovens, adultos, idosos, de diferentes raças, profissões e classes sociais. Não há um marcador específico, uma marca de Caim na testa, uma seta, que indique: “eu sou um violador de mulheres”.
Homens abusadores não são monstros nem um tipo especial ou diferente. É sobre isso que a polêmica frase “todo homem é um estuprador em potencial” vem, principalmente, nos falar. Mais que a ideia de que todos os homens, sem exceção, são socializados em uma liturgia de violência e dominação onde aprendem a sentir prazer a partir da degradação feminina há o fato de que: não existe um perfil de homem acima de qualquer suspeita. Literalmente qualquer homem pode ser aquele que vai te estuprar se assim ele quiser e tiver a oportunidade. E aquele que mais tiver oportunidades está mais próximo de fazê-lo, não à toa as estatísticas demonstram que a maior parte das violências contra mulheres vem de homens que elas conhecem.
2. Um homem que é bom para você hoje pode ser o seu abusador amanhã
O homem do comportamento ilibado em relação às mulheres não existe. Com certeza, em algum momento da vida, em alguma dimensão, foi cometida por ele algum tipo de violência de caráter misógino contra uma mulher. Isso faz parte de crescer como homem em uma sociedade patriarcal. A mulher pode não ter sido você. Não significa que nunca será. Dessa forma, um homem ser bom, justo e decente com você hoje, não significa que ele será assim para sempre.
Homens são socializados para desenvolver sentimentos extremamente utilitários em relação às mulheres, e uma vez que essa relação se altere - como em caso de divórcio ou qualquer outra frustração - ele pode simplesmente alterar o padrão de tratamento que sempre dispensou. Isso porque homens aprendem a não ver mulheres como pessoas, iguais, inteiras, dignas de consideração como um ser humano, e sim como um objeto, que ele aprende a amar sim, mas utilizar, e que pode cuidar muito bem - ou não.
3. Um homem pode não ser violento com você e ser o pesadelo de outras mulheres
Homens aprendem que devem “cuidar do que é seu". O amor e respeito (um tanto deturpados) que eles conseguem oferecer às mulheres vem do sentimento de dono. Mulheres por quem tem apreço são propriedades que eles tratam com níveis de zelo e cuidado que bem determinam e aquelas com que eles não se importam são descartáveis.
Não à toa homens que amam e não são correspondidos sentem-se tão ressentidos e rejeitados e podem se tornar perseguidores. Para homens, amar uma mulher é um sinal de vulnerabilidade que só é superado ao colocar essa mulher sob seu domínio e controle.
Então você pode ter um excelente companheiro que foi um completo pesadelo em outros relacionamentos. Um bom pai, que espanca prostitutas na zona. Um zeloso filho, que filma namoradas durante o sexo e compartilha com os amigos. São pequenas e grandes violências que homens se permitem cometer muito mais à vontade com “a mulher dos outros”.
Até por isso, sempre observe como homens falam e se comportam com outras mulheres, não negligenciem nenhuma história de violência pregressa, observem como é o relacionamento dele com ex-companheiras e quais histórias elas contam. Isso pode sinalizar mais sobre o homem ao seu lado do que você gostaria de lidar.
4. Homens enxergam mulheres como propriedades - suas ou de outros homens.
Homens enxergam mulheres como propriedades, seja sua ou de outros homens, e é assim que eles se relacionam com elas. Por isso é normalizado o fato de um marido, ou pai, por e dispor das mulheres da família, caso queira. E por isso não há estranhamento de outros homens em abusar da esposa, desde que haja permissão do marido, comprar meninas em casamento da mão do seu pai. O consentimento de uma mulher não é relevante, e sim a permissão do seu dono.
É por isso inclusive, que no caso de Gisele Pelicot, inúmeros homens tiveram dificuldade de entender que aquilo que estava acontecendo era um estupro, porque o consentimento que importava a eles era o do marido e não da mulher.
5. Homens se omitem pois se beneficiam da violência masculina
Todos os homens se omitem em algum grau no combate a violência dos seus pares contra as mulheres. Seja calando, seja ignorando propositalmente o tema. Existe um significativo ganho para os privilégios masculinos na existência de uma estrutura social onde há os “homens bons” e os “homens maus”. O problema é que nenhuma dessas duas entidades existem.
Se os “homens bons” realmente existissem e se engajassem em erradicar a violência masculina, a realidade de opressão e submissão das mulheres já teria sido modificada há muito tempo. É muito simples até construir um mundo em que não há mais estupros: basta que homens não estuprem. E se aqueles que não são violadores se comprometessem de verdade com a vigilância entre os seus, essa seria uma realidade bastante factível.
No entanto, é muito conveniente e positivo para homens uma sociedade em que mulheres sentem-se aterrorizadas pelo medo constante da violação e onde existe a figura do "homem mau”. Isso garante que seja criada e exaltada essa figura do “homem bom” que será desejada desesperadamente pelas mulheres para sua salvaguarda e proteção. E como não há como saber quem é esse homem, como qualquer um pode ser o "cara bom” ou o “cara mau”, mulheres estão sempre vulnerabilizadas dentro de um relacionamento se agarrando a qualquer sinal de bom-mocismo que homens emitam, seja verdadeiro ou não.
Todos os homens fazem um pacto implícito de proteção onde alguns “mocinhos” fingem perseguir os “bandidos” para que no final todos ganhem: abusadores permanecerem abusando e outros serem catapultados ao status de “exceção”. De onde sempre poderão abusar também se assim decidirem porque serão encobertos e protegidos.
Homens se protegem e instruem uns aos outros sobre como cometerem delitos sem serem pegos - pelas mulheres. A violação é uma tradição, um rito masculino, um modus operandi, que é passado a todos os interessados, então não há vantagem nenhuma para homens em combater esse sistema.
6. O sistema é feito por homens para sua própria proteção
A estrutura social é organizada para proteger aos homens. A “honra” das mulheres só foi historicamente defendida na relação da sua preservação enquanto propriedade masculina e não por mulheres serem consideradas seres humanos íntegros que precisam e merecem ser preservados.
Dessa forma, os sistemas que ordenam nossa sociedade, ainda que ofereçam recursos de proteção, nunca serão eficientes o bastante a ponto de mitigar a violência masculina. Todas as medidas que existem possuem efeito regulatório e funcionam apenas o suficiente para que mulheres não tomem suas próprias providências para se defender e mantenham ainda sua confiança nos homens.
Quando se trata de violência contra mulheres, apenas são punidos alguns casos que foram "longe demais”.
7. O estupro é uma escolha que homens fazem
Homens escolhem estuprar. Todos são socializados com o dispositivo da violação contra mulheres mas também aprendem valores mínimos sobre direitos humanos. Então, ainda que para alguns, por inúmeros motivos, possam existir impulsos mais fortes no sentido da violação, eles sabem que estão cometendo abuso, sabem que é errado, e escolhem prosseguir porque é justamente a violação que confere prazer.
Um homem não escolhe estuprar porque quer sexo e sim porque quer se conectar com a sensação de onipotência que foi socializado para atingir.
O prazer sexual não é proporcionado por uma eroticidade construída na afetividade, no carinho, na mutualidade, e sim por um erotismo de dominação e aniquilação do outro. É o medo, a humilhação infligida, a sensação de engrandecimento e fortalecimento proporcionada por exercer o controle absoluto sobre o outro que excita.
Portanto homens sabem quando estão cometendo abuso, sabem quando não há consentimento. Eles apenas não só não se importam como se comprazem na violação.
8. Homens negam a violência - e isso é uma estratégia
Homens não admitem, tanto individualmente quanto como grupo, o que são, o que representam e o que fazem. Eles sabem que são os promotores da violência e dominação. Eles sabem que matam, depredam, saqueiam, estupram. Que são os protagonistas das estatísticas de abusadores. Mas dificilmente admitirão isso a alguém (ou a si mesmos), exceto pelo prazer de levar o crédito por sua perversidade.
Admitir quem são e o que são capazes de realizar, nomear isso, seria a primeira etapa para materializar a violência masculina como um fato. E uma vez nomeada, vista, reconhecida, homens seriam convocados a erradicá-la, o que não os interessa. Muitas são as estratégias para camuflar as denúncias de mulheres contra a violência dos homens, inclusive no campo linguistico.
Portanto homens permanecerão negando, fazendo discursos indignados, separando os “homens de bem” dos “monstros”, enquanto prosseguem no seu acordo de cumplicidade.
E aqui reside outra lição importante: homens sempre negarão que cometem violência, portanto sua palavra não é o bastante. Nós mulheres, na posição de principais atingidas, temos todo o direito de nos proteger e exigir provas, sempre. E tudo bem por isso.
9. A pornografia é gatilho
A pornografia, frequentemente apresentada como entretenimento inofensivo, funciona como a principal ferramenta da erotização da violência e dominação como gatilho de prazer, pela promoção da humilhação e desumanização das mulheres. O conteúdo pornográfico molda percepções distorcidas sobre consentimento e intimidade, criando modelos perversos de interação sexual e influenciando atitudes e práticas de violação dos direitos das mulheres.
Dessa forma, se considerarmos tudo, podemos especular bem assertivamente que nem todo homem que é usuário de pornografia comete violência sexual mas todo homem que comete violência sexual é usuário de pornografia.
O uso de pornografia - embora seja considerada uma prática “comum” a todos os homens é sempre uma red flag. Homens usuários de pornografia tem um imaginário sexual muito mais próximos da violência sexual do que gostaríamos de admitir.
Todos os estupradores de Gisele Pelicot encontraram-se online, em sites de encontros, fetiches e pornografia.
10. É muita arriscado dar o benefício da dúvida aos homens
Eu sei que muitas mulheres principalmente as que não foram atingidas da mesma forma, intensidade e/ou frequência pela violência dos homens podem considerar que é um exagero, que é injusto, ficam desconfortáveis em fazer generalizações. Mulheres não querem ser “más”. E homens sabem muito bem transformar nossas desconfianças em culpa.
No entanto, generalizar é um dos mecanismos mais seguros para nos manter atentas, unidas e na defensiva. Na dúvida, desconfie de todos.
A violência masculina encontra ninho nas defesas baixas das mulheres que acreditam que existem homens acima de qualquer suspeita. O maior perigo para nós reside justamente no fato de que não há um perfil, não há um selo de boa conduta possível para nos fazer diferenciar os “homens bons” e os “homens maus”. É como se todos os homens estivessem em uma caixa de chocolates onde 10% deles são seguros de serem comidos, 80% vão te dar uma tremenda dor de barriga e 10% estão envenenados e podem te matar. Você não consegue identificar qual é qual e tudo que te resta é observar permanentemente os sintomas ao ingeri-los.
(e não adianta dizer que é possível não comer os chocolates, eu não falo apenas de relacionamentos românticos heterossexuais aqui, nem de relacionamentos íntimos. O lesbocentramento ajuda a diminuir o contato mas não resolve. Homens estão por toda parte, não vamos nos livrar da convivência com eles, precisamos ter cuidado com todos.)
Eu também sei que somos socializadas para centralizar homens em nossa vida, para colocá-los em um pedestal onde eles ocupam um lugar idealizado que é um misto de herói, santo e protetor. Aprendemos que devemos confiar nos homens e que a desconfiança é sinal de falta de amor. Não é. Ao contrário, relacionar-se com alguém que sabemos que foi ensinado a violar mulheres e precisa permanentemente escolher não violar, é no mínimo um imenso ato de fé.
Temos o direito de nos salvaguardar, nos proteger, desconfiar, e negar o benefício da dúvida.
(e se vale mais um argumento aqui, homens se relacionam conosco, nos amam - à sua maneira - mas não confiam plenamente em nós. Eles sempre se protegem primeiro.)
E digo mais, um homem realmente razoável, que seja minimamente consciente de como as coisas se organizam, respeita o direito de mulheres nunca confiarem nele. Entende o medo que homens causam nas mulheres, os prejuízos terríveis, a desigualdade da relação e não exige lealdade.
Porque esse homem também não confia nos seus pares, pois ele sabe bem do que homens são capazes de fazer. Ele também se protege.
É muito arriscado dar o benefício da dúvida aos homens. Sempre permita-se imaginar o inimaginável.
É isso, até a próxima!
Cila ❤️
Texto incrível, necessário. Deveria ser ensinado para toda menina assim que atingir a adolescência.