Aqui eu trouxe excertos do capítulo I do livro “Mulheres de Direita”, 1983, de Andrea Dworkin, traduzido por Aline Rossi e publicado originalmente no blog Feminismo Com Classe. Ele é um livro profundamente atual e que traz uma perspectiva bastante contundente sobre as possibilidades que restam a nós mulheres de estar no mundo. Eu quis trazer trechos desse capítulo porque acho que ele traz reflexões muito importantes para pensarmos nosso momento político e a maneira como nós estamos lidando umas com as outras, principalmente com mulheres conservadoras e religiosas, na hora de traçar estratégias feministas. Além do que, ler Andrea Dworkin é sempre uma experiência visceral. Aproveitem a leitura.
Há um boato, disseminado há séculos por cientistas, artistas e filósofos, tanto secularistas quanto religiosos, uma espécie de fofoca, digamos, que diz que as mulheres são “biologicamente conservadoras”.
Enquanto a fofoca entre mulheres é universalmente ridicularizada como baixa e trivial, a fofoca entre os homens, especialmente se forem sobre mulheres, é chamada de teoria, ideia ou fato. Esse boato em particular foi dignificado como uma grande ideia, porque era um boato nas academias, bibliotecas e salas de reuniões formidáveis das quais as mulheres, até muito recentemente, eram formalmente e forçosamente excluídas.
Os boatos, por mais que às vezes venham em formas multissilábicas e com notas de rodapé, podem ser reduzidos a um conjunto de afirmações bastante simples. As mulheres têm filhos porque as mulheres, por definição, têm filhos. Esse “fato da vida”, que não está sujeito à qualificação, traz consigo a obrigação instintiva de nutrir e proteger essas crianças.
Portanto, pode-se esperar que as mulheres sejam social, política, econômica e sexualmente conservadoras porque o status quo (seja ele qual for) é mais seguro que a mudança (seja ela qual for). Filósofos nocivos do sexo masculino de todas as disciplinas sustentam, há séculos, que as mulheres seguem um imperativo biológico derivado diretamente de suas capacidades reprodutivas que se traduz necessariamente em vidas limitadas, mentes pequenas e um puritanismo espirituoso bastante mesquinho.
Essa teoria, ou calúnia, é ao mesmo tempo ilusória e cruel pois, de fato, as mulheres são forçadas a ter filhos e têm tido filhos, ao longo da história, em todos os sistemas econômicos, com intervalos de tempo muito pequenos; enquanto os homens não ficavam mais do que apenas momentaneamente desorientados, como, por exemplo, no rescaldo pós-coito imediato de certas revoluções. Na verdade, é inteiramente irracional que mulheres de todas as convicções ideológicas, com a única exceção das pacifistas absolutas (das quais não houve muitas) tenham apoiado, ao longo da história, guerras nas quais as suas próprias crianças, que elas são biologicamente ordenadas a proteger, são mutiladas, estupradas, torturadas e mortas.
Claramente, a explicação biológica da chamada ‘natureza conservadora’ das mulheres obscurece a realidade da vida das mulheres, as enterra em sombras obscuras de distorção e rejeição.
O observador masculino desinteressado ou hostil pode categorizar as mulheres como “conservadoras” em algum tipo de sentido metafísico, porque é verdade que as mulheres como classe aderem estritamente às tradições e valores de seu contexto social, qualquer que seja o caráter desse contexto. Nas sociedades de qualquer descrição, sejam elas definidas de forma ampla ou restrita, as mulheres como classe são conformistas entorpecidas, crentes ortodoxas, seguidoras obedientes, discípulas de fé inabalável.
Titubear, qualquer que seja o credo dos homens ao seu redor, é o mesmo que rebeldia; é perigoso. A maioria das mulheres, que se apega à preciosa vida, não ousa abandonar a fé cega. Da casa do pai à casa do marido, até ao túmulo que pode ainda não ser o seu, a mulher cede à autoridade masculina para obter alguma proteção contra a violência masculina. Ela se conforma, a fim de estar o mais segura possível.
Às vezes, é uma conformidade letárgica; nesse caso, o homem exige que ela se aproxime lentamente, como se ela fosse uma personagem enterrada viva em uma história de Edgar Allan Poe. Às vezes é uma conformidade militante. Ela se salvará ao provar que é leal, obediente, útil e até fanática a serviço dos homens ao seu redor.
Ela é a puta feliz, a dona de casa feliz, a cristã exemplar, a acadêmica pura, a camarada perfeita, a terrorista por excelência. Quaisquer que sejam os valores, ela irá incorporá-los com uma fidelidade perfeita.
Os homens raramente mantêm sua parte do acordo como ela a entende: protegê-la contra a violência masculina. Mas a conformista militante se dedicou tanto — seu trabalho, coração, alma, muitas vezes seu corpo, muitas vezes seus filhos e filhas — que essa traição é semelhante a pregar o caixão; o cadáver está além das possibilidades de cuidado.
As mulheres sabem, mas não devem reconhecer, que resistir ao controle masculino ou confrontar a traição masculina acabará em estupro, espancamento, destituição, ostracização ou exílio, confinamento em uma instituição mental ou prisão ou morte.
Como Phyllis Chesler e Emily Jane Goodman deixam claro em “Mulheres, Dinheiro e Poder”, as mulheres lutam, à maneira de Sísifo, para evitar o “algo pior” que pode e sempre lhes acontecerá se transgredirem os rígidos limites do comportamento apropriado à mulher. A maioria das mulheres não pode se dar ao luxo de reconhecer, material ou psicologicamente, que quaisquer ofertas de obediência que elas tragam para pedir proteção não apaziguarão os deusezinhos raivosos ao seu redor.
Não é de surpreender, portanto, que a maioria das meninas não queiram se tornar como suas mães, aquelas domésticas cansadas, sargentonas, preocupadas, atormentadas por problemas incompreensíveis. As mães criam filhas para se ajustarem às restrições da vida feminina convencional, conforme definida pelos homens, quaisquer que sejam os valores ideológicos dos homens. As mães são as executoras imediatas da vontade masculina, as guardas na porta da cela, as capatazes que dão choque-elétrico para punir a rebelião.
A maioria das meninas, por mais que se ressintam de suas mães, se torna muito parecida com elas. A rebelião raramente consegue sobreviver à terapia de aversão que passa por ser criada como mulher. A violência masculina atua diretamente sobre a menina através de seu pai, irmão, tio ou qualquer número de profissionais masculinos ou estranhos, como aconteceu com sua mãe, e ela também é forçada a aprender a se conformar para sobreviver.
Ao entrar na idade adulta, a garota pode até repudiar o conjunto específico de homens com quem sua mãe se alia, andar com um bando diferente, mas ela replicará os padrões de sua mãe ao concordar com a autoridade masculina dentro de seu próprio conjunto escolhido. Usando força e ameaça, homens em todos os campos exigem que as mulheres aceitem o abuso em silêncio e vergonha, que se amarrem ao fogão e ao lar com cordas feitas de culpa, raiva não-verbalizada, pesar e ressentimento.
É moda entre os homens desprezar a pequenez da vida das mulheres.
(…)
E o escárnio da vida feminina não para com essas calúnias tóxicas, feias e traiçoeiras, porque sempre existe, em todas as circunstâncias, o escárnio em sua forma esquelética, todo osso, a carne despojada: ela é xoxota, boceta. Todas as outras partes do corpo são cortadas, afastadas e só resta uma coisinha não-humana, e isso, que é a piada mais engraçada de todas, uma fonte inesgotável de humor estridente para aqueles que fizeram o corte. Os mesmos açougueiros que cortam a carne e jogam fora as partes inúteis são os comediantes. A redução de uma pessoa inteira à vagina e útero e depois a uma obscenidade desmembrada é a sua melhor e favorita piada.
Toda mulher, não importa qual seja sua situação social, econômica ou sexual, luta contra isso com todos os recursos que tem. Como seus recursos são surpreendentemente escassos e como ela foi privada dos meios para organizá-los e expandi-los, essas tentativas são simultaneamente heróicas e patéticas.
A prostituta, ao defender o cafetão, encontra seu próprio valor na luz refletida de seus enfeites espalhafatosos. A esposa, ao defender o marido, grita ou gagueja que sua vida não é um terreno baldio de possibilidades assassinadas. A mulher, ao defender as ideologias dos homens que sobem escalando a pilha feita com os corpos delas na formação militar, não lamenta publicamente a perda do que aqueles homens lhe tiraram: ela não gritará quando os calcanhares deles cravarem a sua carne porque fazer isso significaria da sua própria significância; todos os ideais que a motivavam a negar a si própria seriam indelevelmente manchados de sangue que ela teria que reconhecer, finalmente, como sendo seu.
Assim, a mulher se apega, não com a delicadeza de uma videira apoiada, mas com uma tenacidade incrível em sua intensidade, às próprias pessoas, instituições e valores que a depreciam, degradam, glorificam sua impotência, insistem em restringir e paralisar a natureza e expressões mais honestas de sua vontade e ser. Ela se torna uma lacaia, servindo àqueles que, cruel e eficazmente, agridem contra ela e sua espécie. Essa lealdade particularmente abominável a quem se compromete com sua própria destruição é a própria essência da feminilidade, como a definem os homens de todas as convicções ideológicas.
(…)
As pessoas — como sempre nos lembram os falsos igualitaristas — sempre morreram muito jovens, muito cedo, muito isoladas, muito cheias de angústias insuportáveis. Mas apenas mulheres morrem uma a uma, famosas ou anônimas, ricas ou pobres, isoladas, sufocadas até a morte pelas mentiras emaranhadas em suas gargantas.
Somente mulheres morrem uma a uma, tentando até o último minuto incorporar um ideal imposto a elas por homens que desejam usá-las. Somente mulheres morrem uma a uma, sorrindo até o último minuto, o sorriso da sereia, o sorriso da garota tímida, o sorriso da louca.
Somente mulheres morrem uma a uma, perfeitamente polidas ou desarrumadas atrás de portas trancadas, tão desesperadamente envergonhadas para conseguirem gritar.
Somente as mulheres morrem uma a uma, ainda acreditando que se elas fossem perfeitas — a esposa, a mãe ou a prostituta perfeitas — elas não teriam odiado tanto a vida, achando-a tão estranhamente difícil e vazia, elas mesmas irremediavelmente confusas e desesperadas.
As mulheres morrem, lamentando não a perda de suas próprias vidas, mas sua incapacidade indesculpável de alcançar a perfeição, como os homens a definem para elas. As mulheres tentam desesperadamente incorporar um ideal feminino definido porque a sobrevivência depende disso. O ideal, por definição, transforma uma mulher em uma função, a priva de qualquer individualidade que seja egoísta ou criada por si mesma, que não é útil para o homem em seu esquema de coisas.
Essa monstruosa busca feminina pela perfeição definida pelo homem, tão intrinsecamente hostil à liberdade e à integridade, leva inevitavelmente à amargura, paralisia ou morte, mas, como a miragem no deserto, o oásis vivificante que não existe, a sobrevivência é prometida nessa conformidade e em mais nenhum outro lugar.
Como um camaleão, a mulher deve se misturar ao seu ambiente, nunca chamando atenção para as qualidades que a distinguem, porque fazer isso seria atrair a atenção mortal do predador. Ela é, de fato, carne de caça — todos os autores, cientistas e até os filósofos de botequim dirão com tanto orgulho. Tentando barganhar, a mulher diz: “Venho a ti nos teus próprios termos”. Sua esperança é que a atenção assassina dele se concentre em uma mulher que se conforma menos astuciosamente, e com menos vontade. Com efeito, ela resgata restos de vida — o que resta depois de ter renunciado voluntariamente à individualidade — prometendo indiferença ao destino de outras mulheres. Essa adaptação sexual, sociológica e espiritual, que é de fato a mutilação de toda a capacidade moral, é o principal imperativo de sobrevivência para as mulheres que vivem sob o domínio da supremacia masculina.
(…)
Os relatos de estupro, agressão de esposas, gravidez forçada, crueldade médica, assassinato motivado com base no sexo, prostituição forçada, mutilação física, abuso psicológico sádico e outros lugares-comuns da experiência feminina que são escavados no passado ou relatados por sobreviventes contemporâneas deveriam deixar o país de coração em brasa, com a mente angustiada, a consciência inquieta. Mas não. Não importa quantas vezes essas histórias sejam contadas, com qualquer clareza ou eloquência, amargura ou tristeza, elas podem muito bem ser sussurradas no vento ou escritas na areia: elas desaparecem, como se não fossem nada.
As vítimas e as suas histórias são ignoradas ou ridicularizadas, ameaçadas de volta para o silêncio ou destruídas, e a experiência do sofrimento feminino é enterrada na invisibilidade e no desprezo culturais. Como o testemunho das mulheres não é e não pode ser validado pelo testemunho de homens que experimentaram os mesmos eventos e deram a eles o mesmo valor, a própria realidade de abuso sofrida pelas mulheres, apesar de sua abrangência e frequência esmagadora, é negada. É negada nas transações da vida cotidiana, e é negada nos livros de história, deixada de fora, e é negada por aqueles que afirmam se preocupar com o sofrimento, mas são cegos a esse sofrimento.
O problema, simplesmente, é que é preciso acreditar na existência da pessoa para reconhecer a autenticidade de seu sofrimento. Nem homens nem mulheres acreditam na existência de mulheres como seres significativos.
É impossível pensar como real o sofrimento de alguém que, por definição, não tem pretensão legítima de dignidade ou liberdade, alguém que é de fato visto como algo, um objeto ou uma ausência. E se a mulher, a mulher individual multiplicada por bilhões, não acredita em sua própria existência discreta e, portanto, não pode creditar a autenticidade de seu próprio sofrimento, ela é apagada, cancelada e o significado de sua vida, seja ele qual for, seja lá qual poderia ter sido, se perde.
Esta perda não pode ser calculada ou compreendida. É vasta e horrível, e nada vai compensar isso. Ninguém pode suportar viver uma vida sem sentido.
Mulheres lutam pela significação, assim como mulheres lutam pela sobrevivência: apegando-se aos homens e aos valores vangloriados pelos homens. Ao se comprometerem com os valores masculinos, as mulheres procuram adquirir valor. Ao defender a significação masculino, as mulheres buscam adquirir significado. Subservientes à vontade masculina, as mulheres acreditam que a própria subserviência é o significado de uma vida feminina.
Desse modo, as mulheres, independentemente do que sofrem, não sofrem a angústia de um reconhecimento consciente de que, por serem mulheres, foram roubadas de vontade e escolha, sem as quais nenhuma vida pode ter significado.
A direita política nos Estados Unidos hoje faz certas promessas metafísicas e materiais para as mulheres que exploram e acalmam alguns dos medos mais profundos das mulheres. Esses medos se originam na percepção de que a violência masculina contra mulheres é incontrolável e imprevisível.
Dependentes e subservientes aos homens, mulheres estão sempre sujeitas a essa violência. A Direita promete impor restrições exageradas à agressão masculina, simplificando assim a sobrevivência das mulheres — tornar o mundo um pouco mais habitável, em outras palavras — oferecendo o seguinte:
Forma. Mulheres experimentam o mundo como um mistério. Mantidas ignorantes relativamente à tecnologia, à economia, à maioria das habilidades práticas necessárias para funcionar de forma autônoma, mantidas ignorantes sobre as reais demandas sociais e sexuais feitas às mulheres, privadas de força física, excluídas dos fóruns para o desenvolvimento da acuidade intelectual e da autoconfiança pública, as mulheres estão perdidas e confusas com o impulso selvagem de uma vida comum. Sons, sinais, promessas, ameaças se cruzam loucamente, mas o que significam? A Direita oferece às mulheres uma ordem social, biológica e sexual simples, fixa, predeterminada. A forma vence o caos. A forma bane a confusão. A forma dá à ignorância um molde, faz com que pareça com algo invés de nada
Abrigo. As mulheres são criadas para manter a casa do marido e a acreditar que mulheres sem homens são desabrigadas. As mulheres têm um profundo medo de ficarem sem-teto — à mercê dos elementos e de homens estranhos. A Direita alega proteger o lar e o lugar da mulher nele.
Segurança. Para as mulheres, o mundo é um lugar muito perigoso. Um movimento errado, mesmo um sorriso não intencional, pode trazer desastre — assalto, vergonha, desgraça. A Direita reconhece a realidade do perigo, a validade do medo. A Direita então manipula o medo. A promessa é que, se uma mulher for obediente, o dano não acontecerá.
Regras. Vivendo em um mundo que ela não criou e que não entende, a mulher precisa de regras para saber o que fazer a seguir. Se ela souber o que deve fazer, poderá encontrar uma maneira de fazê-lo. Se ela aprender as regras rotineiramente, poderá executar com aparente esforço, o que aumentará consideravelmente suas chances de sobrevivência. A Direita, com muita consideração, diz às mulheres as regras do jogo das quais suas vidas dependem. A Direita também promete que, apesar da soberania absoluta deles, os homens também seguirão regras especificadas.
Amor. O amor é sempre crucial para efetivar a lealdade das mulheres. A Direita oferece às mulheres um conceito de amor baseado em ordem e estabilidade, com áreas formais de responsabilidade mútua. A mulher é amada por cumprir suas funções femininas: obediência é uma expressão de amor, assim como submissão sexual e gravidez. Em troca, o homem deve ser responsável pelo bem-estar material e emocional da mulher. E, cada vez mais, para resgatar as cruéis inadequações dos homens mortais, a Direita oferece às mulheres o amor de Jesus, ótimo irmão, amante terno, amigo compassivo, curador perfeito da tristeza e do ressentimento, o homem a quem se pode submeter absolutamente — ser Mulher, digamos — sem ser violada sexualmente ou abusada psicologicamente.
É importante e fascinante, claro, observar que mulheres nunca (por mais iludidas, necessitadas ou desesperadas) adoram Jesus como o filho perfeito. Nenhuma fé é tão cega. Não há paliativo religioso ou cultural que amorteça a dor crua da traição do filho à mãe: somente sua própria obediência ao mesmo pai, o sacrifício de sua própria vida na mesma cruz, seu próprio corpo pregado e sangrando, podem capacitá-la a aceitar que seu filho, como Jesus, veio fazer o trabalho de seu pai.
A feminista Leah Fritz, em Thinking Like a Woman, descreveu a situação excruciante de mulheres que tentam encontrar valor na submissão cristã: “Não-amada, não-respeitada, não-notada pelo Pai Celestial, tratada de forma condescendente pelo Filho e fodida pelo Espírito Santo, a mulher ocidental passa sua vida inteira tentando agradar.” [3]
(…).
Na Conferência Nacional de Mulheres (Houston, Texas, novembro de 1977), conversei com muitas mulheres à direita. As conversas eram ridículas, aterrorizantes, bizarras, instrutivas e, como outras feministas relataram, às vezes estranhamente comoventes.
Mulheres de direita temem lésbicas. Uma delegada negra liberal do Texas me disse que as mulheres brancas dali haviam tentado convencê-la de que lésbicas a atacariam na conferência, iriam chamá-la de nomes sujos e que elas próprias eram sujas. Ela me disse que votaria contra a resolução de preferência sexual porque, caso contrário, não seria capaz de voltar para casa. Mas ela também disse que diria às mulheres brancas que as lésbicas eram educadas e limpas. Ela disse que sabia que era errado privar alguém de um emprego e não tinha ideia antes de vir para Houston que mães lésbicas tinham perdido seus filhos. Ela sentia que isso era realmente terrível. Perguntei-lhe se ela achava que chegaria a hora de defender os direitos das lésbicas em sua cidade natal. Ela assentiu com a cabeça com seriedade, e explicou com ênfase cuidadosa e sugestiva que a cidade mais próxima de onde morava ficava a 160km de distância. A história dos negros no sul era palpável. *
As mulheres de direita sempre me falaram sobre as lésbicas como se fossem estupradoras, comissárias certificadas de agressão sexual contra mulheres e meninas. Nenhum fato conseguiria penetrar nessa fantasia psicossexual. Não há fatos ou números sobre a violência sexual masculina contra mulheres e crianças que possam mudar o foco de seu medo.
Elas admitiam que conheciam muitos casos de agressão masculina contra mulheres, inclusive dentro de famílias, e não conheciam nenhuma agressão cometidas por lésbicas contra mulheres. Os homens, elas reconheciam quando pressionadas, eram pecadores e odiavam o pecado, mas havia claramente algo consolador na normalidade do estupro heterossexual.
Para elas, a lésbica era inerentemente monstruosa, experimentada quase como uma força sexual demoníaca pairando cada vez mais perto. Ela era a intrusa perigosa, invasora, ameaçando com sua presença uma ordem sexual que não pode suportar escrutínio ou suportar desafio.
As mulheres de direita consideram o aborto como um assassinato insensível de bebês. O desinteresse feminino se expressa na convicção de que um óvulo fertilizado supera uma fêmea adulta na autenticidade de sua existência. A tristeza dessas mulheres por fetos é real e seu desprezo pelas mulheres que engravidam fora do casamento é impressionante de se ver. O fato da maioria dos abortos ilegais nos maus e velhos tempos ter sido realizado em mulheres casadas e com filhos e que milhares dessas mulheres morrem a cada ano é totalmente insignificante para elas. Elas vêem o aborto como um ato criminoso cometido por prostitutas sem Deus no coração, mulheres absolutamente diferentes delas próprias.
As mulheres de direita argumentam que a aprovação da Emenda para a Igualdade de Direitos legalizará o aborto irrevogavelmente. Não importa quantas vezes ouvisse esse argumento (e ouvia o tempo todo), simplesmente não conseguia entender. Por mais tola que eu fosse, eu pensava que a Emenda para a Igualdade de Direitos era repugnante por causa dos banheiros. Como os banheiros figuravam com destaque na resistência à legislação de direitos civis que protegeria os negros, o argumento centralizado nos banheiros — embora irracional — era tão americano quanto a torta de maçã. Ninguém mencionou os banheiros. Eu coloquei o assunto na mesa, mas ninguém se importou em discuti-los. Os apaixonados e repetidos argumentos de causa e efeito que vinculam a Emenda para a Igualdade de Direitos e o aborto apresentavam um novo mistério.
Eu me resignei à desesperançada confusão. Felizmente, depois da conferência, li “O poder da mulher positiva”, no qual Schlafly explica: “Como a premissa da ERA é a igualdade dos sexos, o aborto é essencial para aliviar as mulheres de sua carga desigual de serem forçadas a dar à luz um bebê indesejado.” [19]
Forçar mulheres a gerarem bebês indesejados é crucial para o programa social das mulheres que foram forçadas a gerar bebês indesejados e que não podem suportar a dor e a amargura de reconhecer tal coisa. A Emenda para a Igualdade de Direitos agora se tornara o símbolo desse reconhecimento devastador. Isso explica em grande parte a nova onda de oposição intransigente a ela.
(…)
A Direita nos Estados Unidos, hoje, é um movimento social e político controlado quase totalmente pelos homens, mas construído em grande parte à base do medo e ignorância das mulheres. A qualidade desse medo e a difusão dessa ignorância são consequências da dominação sexual masculina sobre as mulheres. Toda acomodação que as mulheres fazem a esse domínio, por mais que pareça estúpida, derrotista ou perigosa, está enraizada na necessidade urgente de sobreviver de alguma maneira nos termos masculinos.
Inevitavelmente, isso faz com que as mulheres sintam a raiva e o desprezo que sentem pelos homens que realmente as abusam, aqueles que estão próximos a elas, e o projetam nos outros, nos que estão distantes, estrangeiros ou diferentes. Algumas mulheres fazem isso se tornando patriotas de direita, nacionalistas determinadas a triunfar sobre populações a milhares de quilômetros de distância.
Algumas mulheres se tornam racistas estridentes, anti-semitas ou homofóbicas. Algumas mulheres desenvolvem um ódio por mulheres solteiras ou divorciadas, adolescentes grávidas, todas as pessoas desempregadas ou em assistência social. Algumas odeiam pessoas que violam convenções sociais, não importa quão superficiais sejam as violações. Algumas se tornam antagônicas a grupos étnicos diferentes dos seus ou a grupos religiosos diferentes dos seus, ou desenvolvem um ódio por essas convicções políticas que contradizem as suas.
As mulheres se apegam a ódios irracionais, concentradas principalmente no desconhecido, para que não matem pais, maridos, filhos, irmãos, amantes, homens com quem são íntimos, aqueles que os machucam e causam sofrimento. O medo de um mal maior e a necessidade de ser protegida intensificam a lealdade das mulheres aos homens que são, mesmo perigosos, pelo menos conhecidos até certo ponto. Como as mulheres desviam a sua raiva, elas são facilmente controladas e manipuladas.
Tendo boas razões para odiar, mas não a coragem de se rebelar, as mulheres exigem símbolos de perigo que justifiquem seu medo. A direita fornece esses símbolos de perigo ao designar grupos claramente definidos como “estrangeiros” como fontes de perigo. As identidades dos estranhos perigosos podem mudar ao longo do tempo para atender às mudanças nas circunstâncias sociais — por exemplo, o racismo pode ser incentivado ou contido; o anti-semitismo pode ser provocado ou mantido inativo; a homofobia pode ser agravada ou mantida debaixo do tapete — mas a existência do estranho perigoso sempre funciona para as mulheres simultaneamente como engano, diversão, analgésico e ameaça.
A tragédia é que mulheres tão focadas em sobreviver não conseguem reconhecer que estão cometendo suicídio.
O perigo é que as mulheres que se sacrificam são soldados perfeitos que obedecem ordens, não importa quão criminosas sejam essas ordens.
A esperança é que essas mulheres, perturbadas por conflitos internos que não possam ser silenciados pela manipulação, desafiadas pelo drama esclarecedor do confronto e do diálogo público, sejam forçadas a articular as realidades de suas próprias experiências como mulheres sujeitas à vontade dos homens. Ao fazê-lo, a raiva que surge necessariamente de uma verdadeira percepção de como elas foram degradadas pode movê-las além do medo que as transfixa para uma rebelião significativa contra os homens que, de fato, as diminuem, as desprezam e aterrorizam.
Essa é a luta comum de todas as mulheres, quaisquer que sejam suas origens ideológicas definidas pelo homem; e essa luta sozinha tem o poder de transformar mulheres inimigas umas contra as outras em aliadas que lutam pela sobrevivência individual e coletiva, que não se baseia em auto-aversão, medo e humilhação, mas em autodeterminação, dignidade e integridade autêntica.
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