A liberdade sexual das mulheres é uma mentira
ou não existe possibilidade de recusa em uma cultura do estupro
Oi, como estão as coisas por aí?
Este texto não é exatamente inédito, eu resolvi revisitá-lo, atualizá-lo e trazer para cá porque ele sintetiza muito bem a violência que rege a lógica dos encontros amorosos heterossexuais. Então considerem que ele é de utilidade pública. Espero que aproveitem.
Eu queria conversar com você sobre sexo e como a vida sexual de uma mulher é controlada e moldada para cumprir expectativas que estão muito aquém de um sentido de realização e plenitude para ela mesma. Vivemos em uma cultura do estupro e existe uma socialização que é aliciadora e facilitadora de encontros que são permeados por elementos de força, coação e coerção, que funcionam para deturpar a nossa noção de consentimento. E nossas relações sexuais com homens são marcadas pela compulsoriedade. Não existe para nós a possibilidade da recusa.
Jogos vorazes
Homens aprendem que sexo é feito para eles. Que apenas eles precisam ter prazer dessa experiência e que seu corpo tem “necessidades”. Que são uma espécie de animal sexual movido pelo instinto cujo testículo vai explodir se não transar. Aprendem que não podem e não devem se conter portanto devem conquistar e foder o maior número de mulheres. Isso será a prova cabal de que ele é macho e viril. Portanto são incitados a serem hiperfocados em sexo desde a mais tenra idade, pressionados a ter a primeira relação sexual o quanto antes, estimulados a exibir peripécias sexuais como prova de masculinidade.
Mulheres, por sua vez, também aprendem que homens são naturalmente mais sexuais, que só pensam em sexo porque “precisam” disso. Na mesma medida que vão tendo a sua sexualidade reprimida e regulada pela ideia de que serão iniciadas por um homem, que vai mostrá-las como é o prazer. Vão sendo instruídas em uma série de mitos sobre seu próprio corpo: que não sentem tanto desejo, que o gozo feminino é mais “complicado”, são desestimuladas a prática da masturbação, que é normal ter relação sexual sem orgasmos e que o maior prazer está em “dar prazer a quem se ama”.
Aqui se estabelece a regra do jogo: homens são facilitados para comparativamente sempre serem mais experientes que mulheres no início da vida sexual e que devem iniciá-las, assumindo aqui o controle do corpo, da experiência e do prazer feminino. Mulheres aprendem a valorizar o ato sexual pelo seu caráter emocional, por estarem dando prazer, e não pelo potencial de seu próprio gozo e satisfação física. Não a toa pesquisas sobre ocorrência de orgasmos demonstram que são as mulheres hetero as que menos atingem o clímax nas suas relações.
Mulheres aprendem que não devem demonstrar ser mais experientes ou interessadas sexualmente que o seu potencial parceiro. Primeiro porque protelar o momento do sexo é uma estratégia feminina para manter o homem por perto tempo o suficiente para criar vínculo emocional (já que boa parte do interesse masculino cessa após o sexo) e assim engatar um relacionamento que pode resultar em algo duradouro (que é o que mulheres são ensinadas a almejar).
Em seguida porque mulheres aprendem que uma “mulher de valor”, a “mulher direita”, “mulher para casar”, resiste às investidas sexuais dos pretendentes até o limite. Ela se “valoriza”. E o que isso significa? Que ela deve colocar um valor de uso na própria genitália e aumentar o passe, cedendo não porque ela tem vontade de fazer sexo mas porque determinadas condições foram estabelecidas por ela e alcançadas.
Homens aprendem que mulheres que se “valorizam” são as que dizem não. Que elas só passam a gostar de sexo depois de serem conquistadas pelo “homem certo”, que obviamente é ele mesmo. Que uma mulher interessada e desejosa por sexo é aquela que já sabe que o ato é bom porque algum outro homem mostrou isso a ela.
Então, quando homens se deparam com a recusa sexual feminina, têm a noção distorcida de que, ou aquela mulher não gosta de sexo porque ainda ninguém lhe mostrou como isso é bom, ou que aquela mulher já sabe que sexo é bom e portanto o está rejeitando e deve transar com ele. Então ele vai sempre insistir até ela ceder. É a receita do desastre. De um lado mulheres aprendem a recusar do outro homens aprendem a nunca aceitar uma recusa.
(Observe por exemplo como homens dizem que o “problema” de mulheres lésbicas é que “nunca conheceram um homem de verdade”, ou como tratam mulheres que demonstram interesse em sexo como se elas tivessem obrigação de transar com eles já que “elas transam com todo mundo")
Se a boa mulher sempre nega sexo e o bom homem sempre insiste apesar do não, como podemos falar sobre consentimento? Se o "não” é uma premissa que deve ser necessariamente vencida, derrubada, nunca aceita? Se homens devem “conquistar” a mulher, “amansar a fera”, já que mulheres são tolas e estúpidas e não sabem o que querem até um homem mostrar-lhe o que é bom? A premissa do cortejo sexual é ignorar a possibilidade de recusa da mulher e isso é a espinha dorsal de uma cultura do estupro.
Quantos homens não roubam beijos, acariciam e apalpam mulheres sem o seu consentimento ? Quantos homens não fazem sexo com sua parceira sem estar realmente preocupado se ela está com vontade ou aproveitando a experiência? Que mulher nunca transou por senso de “obrigação”? Que mulher nunca transou pela ameaça velada de traição?
O “não estou com vontade” é tão solenemente ignorado a ponto de originar a clássica piada sobre a desculpa da “dor de cabeça” para não transar. Mulheres terem que inventar que estão doentes ou indispostas para que seus companheiros desistam de querer um sexo que ela não está com vontade de realizar é cruel demais. E um sexo que muitas vezes aquela mulher não quer fazer simplesmente porque é ruim, ela não tem nenhum prazer, não é uma experiência que ela aproveite. Que ela finge ter um orgasmo para ver se aquilo acaba de uma vez e ela pode continuar a ver série. Um sexo que é visto como um mal necessário para dar estabilidade e paz na união.
Quantas mulheres não escutaram frases como essas, tão absolutamente violentas: “não custa nada", “é só um pouquinho", “é rapidinho”?
Fomos impossibilitadas de exercitar e afirmar nossa recusa no interlúdio com homens e condenadas a ceder, sempre. Nossas relações sexuais com homens são marcadas pela compulsoriedade porque são organizadas para que não consigamos escapar.
Gaiolas maiores
É importante destacar também que ainda que, atualmente, esteja se formando um discurso de “liberdade e empoderamento” sexual para mulheres, isso vem para atender uma demanda masculina de conseguir sexo de maneira mais rápida, descompromissada e desburocratizada assim como a entrada do corpo das mulheres num mercado de exploração sexual interconectado e em escala mundial.
O homem viril também está mudando, hoje ele é o consumidor de prostituição, tráfico sexual, pornografia e pedofilia e movimenta trilhões de dólares.
A “liberdade sexual” que mulheres começam a usufruir hoje não é o resultado de uma geração de mulheres que está mais consciente da própria sexualidade, no controle dos seus desejos e livres da demanda de agradar aos homens. Muito pelo contrário. Mulheres nunca foram tão reféns de padrões de beleza (criados para agradar homens), pornificação e sexualização precoce.
Temos uma inversão perversa. Antes mulheres deveriam dizer “não”, mesmo se quisessem fazer sexo. Agora elas devem dizer “sim”, mesmo que não queiram. Permanecemos sem a opção da recusa sob a pena de sermos ostracizadas socialmente, chamadas de “caretas”, “antiquadas” e deixadas de lado pelo homens que viram e muito aumentar a oferta sexual.
Se antes mulheres protelavam o sim para garantir alguma permanência dos homens, agora elas o antecipam para evitar que eles sumam. O sexo como padrão do encontro se tornou tão comum que até inventaram um nome para pessoas que querem fazer a coisa mais antiga e normal do mundo que é transar após ter alguma conexão com o indivíduo: o advento do “demissexual”.
Mas é claro que a lógica organizadora dos relacionamentos não desapareceu, apenas está mais subjacente. Mulheres sabem que continuam sendo julgadas pelo timing em que resolvem transar. A contabilidade do momento certo para tentar garantir uma mensagem no dia seguinte continua. Só que agora novas estratégias de manutenção do interesse masculino começam a surgir. Então agora também devemos ser furacões sexuais que gozam com jatos dignos de um caminhão de bombeiro e fazem todo tipo de estripulia na cama. Nada de sexo “baunilha”.
É a narrativa do pornô construindo perfomances falsas de mulheres que tem orgasmos de qualquer jeito, a todo custo, sem muito esforço da participação masculina. Que gozam sofrendo violência e chamando de fetiche. Homens que vão transando cada vez pior com a dessensibilização que mesma pornografia causa. Nunca foi tão difícil encontrar bons parceiros sexuais. Homens sofrem de todo tipo de distúrbio sexual, ejaculação precoce, impotência, desinteresse. Estão desaprendendo a fazer sexo. E mulheres estão cada vez mais presas nessa armadilha. Mas agora iludidas de que estão “escolhendo”. Porque são “livres”.
Nunca houve tanta “liberdade sexual”. Nunca transamos tão mal e perdemos tanto o interesse por sexo.
Mulheres continuam sem direito a recusa. Tendo péssimas experiências sexuais sem fruição de gozo. Estamos sendo instruídas sexualmente de maneira completamente equivocada pela pornografia e desenvolvendo todo tipo de disforia corporal em função dos padrões estéticos que são lançados.
E os homens? Continuam fazendo sexo, agora com muito menos esforço e investimento. E permanecem na sua performance de homem viril, mas agora repaginado.
É um cenário bastante sombrio se pensarmos que antes, pelo menos, mulheres tomaram consciência de sua condição de exploração e repressão sexual e reivindicaram liberdade. Agora mulheres pretendem-se livres e não percebem como apenas continuamos livres para continuar agradando homens e correr atrás da sua aprovação, como sempre.
Liberdade é poder dizer “não”. E mulheres nunca puderam dizer “não”. Hoje caímos dentro de uma armadilha quase perfeita. Não existe liberdade sexual em uma cultura do estupro.
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